Alimentação sempre foi tema de obras de arte, esculturas e pinturas, por exemplo. É este o tema tratado por Sandra Mian, engenheira de alimentos, estudiosa dos aspectos antropológicos da alimentação e criadora do Grupo Comida pra Estar de Bem com a vida no Facebook (veja link ao final). Ela escolheu uma obra em especial, que representa a vida dos camponeses na Europa, para falar neste espaço. Confira:
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Pintada, ao redor de 1597, e assinada pelo pintor Jan Brueghel, o Velho. (Nessa época, as pessoas se denominavam pela profissão ou em relação à idade do pai (o Velho, o Jovem) como a gente hoje usa Filho, Júnior, etc). O quadro deste post é mais um dos países baixos, atualmente a Holanda.
Flandres, naquela época, correspondia à atual Bélgica e também à atual Holanda. Esses países estavam indo bem economicamente e tudo indica que os camponeses dessas regiões, embora pobres, viviam melhor do que os do sul da Europa.
A cena representa a visita do dono das terras à propriedade arrendada. A casa é simples e todas as atividades são feitas no mesmo local: a cozinha! A cozinha e a grande lareira eram o centro da casa. Lareira em português virou “lar”.
A casa da obra é realmente pobre porque nem uma “lareira” de verdade existia. O que há é um “focolare”, um fogo central com uma cremalheira e, suspendido sobre ele, um imenso caldeirão. Se olharem com cuidado vão ver vegetais no caldeirão, provavelmente uma sopa de legumes. Carne era coisa rara, muito rara. Perto do fogo está o bercinho da criança com um cachorro devidamente instalado! A mãe já a amamentou e está com ela na famosa posição pra arrotar!
Duas pessoas batem manteiga ao fundo. A mesa está posta: há um pão enorme e tigelas pra sopa nas quais provavelmente se colocou antes fatias desse mesmo pão. Ele era feito uma vez por semana, às vezes até uma vez por mês. Eram enormes e assim se conservavam melhor. No centro da mesa há uma massa amarela que tanto pode ser queijo quanto manteiga. A alimentação de base desses pequenos agricultores era o pão, papas de cereais (como a aveia no casa da Irlanda e Escócia), legumes, leite, queijo, manteiga. Alguns ovos, raríssima carne e aves. A bebida, em geral, era a cerveja que até as crianças bebiam. Há uma criança bebendo diretamente de um pequeno vaso e bem pode ser cerveja!
Perto da porta, ao alto, sobre uma grade, alguns queijos amadurecem. É o que no Brasil se chama de girau, um estrado pra guardar víveres longe dos roedores.
A família toda mora ali, come e trabalha junto. É possível ver alguns rolos com fios e também tecidos e uma tesoura. As mulheres aproveitam o tempo frio para tecer perto do fogo. A pausa foi pra comida, alguns nem param pra receber a “visita” do dono das terras, que são três: duas mulheres e um homem, identificados rapidamente pelas roupas e parecem ser pessoas boas porque estão trazendo presentes para os camponeses.
Mas o que mais impressiona nesse quadro é o presente que o dono das terras está apresentando ao camponês chefe da família! Um cone no formato da linda montanha carioca: o pão de açúcar! Aliás, a nossa montanha ganhou esse nome porque ela se parecia com o formato que era dado pro açúcar nessa época, era um cone, como uma bala de revólver mas bem grande. Um pão de açúcar.
Esse senhor das duas uma: ou era muito rico ou era muito generoso! Provavelmente as duas coisas! Açúcar nessa época e nessa região da Europa era caríssimo e, inclusive, era usado como remédio, vendido em pequenas porções pelos “boticários”, os farmacêuticos da época. Daí surgiu uma expressão do tipo “casa de ferreiro espeto é de pau” na Europa: “farmacêutico sem açúcar”!
A obra é de uma época de transição entre a Idade Média e a Era Moderna, em pleno Renascimento do Norte da Europa (lembrando que na Itália ele começou antes).
Esse quadro é uma aula e tanto de história. Cada vez que o vejo fico pensando em cada detalhe, em cada cena, no que está passando pela cabeça do camponês e das pessoas da sua família ao receberem aquele presente. Talvez a mãe dê uns pedacinhos pras crianças chuparem no Natal, como ainda se faz no Brasil com a rapadura. Fico pensando nas dificuldades dessa família, nas inquietudes dessas mulheres em conseguir por comida na mesa. E desses homens em conseguir produzir pra pagar o arrendamento das terras.
Gente como essa foram meus ancestrais, só que na Itália. Eu penso muito neles vendo essa imagem. E os agradeço por tudo. E principalmente por terem de certa forma me gerado. E criado em mim esse respeito imenso pela comida que alimenta, que une, que cura. Cura até feridas da alma.
* Sandra Mian é criadora do Grupo Comida pra Estar de Bem com a vida no Facebook, espaço onde fala de técnicas, receitas e curiosidades do universo gastronômico. O grupo é aberto! Participe!
https://www.facebook.com/groups/240127929523952/
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