* Por Heyttor Barsalini
É verdade que peixe, banana e farinha de mandioca são os ingredientes mais tradicionalmente presentes na elaboração das refeições tradicionais da culinária caiçara. Mas a compreensão do que seja “tradicional”, apenas recentemente é que começou a ser ampliada.
De forma limitada, entendia-se o caiçara como aquele morador da beira-mar, cuja casa estava construída pouco aquém do jundu (vegetação típica das praias), antes da faixa de areia.
No entanto, sempre houve o caiçara do sertão, aquele que preferia as carnes de caça (paca, preguiça, tatu, porcos do mato, aves nativas), aos peixes do mar. Aquele que também tinha sua roça de mandioca e, além dela, plantava e consumia feijão, abóbora e um pouco de milho. Para ambos (praiano ou sertanejo) também o consumo de patos e galinhas, bem como os ovos dessas aves, era um hábito.
É necessário, então, que ampliemos, no espaço e no tempo, nossos horizontes ao pensarmos no que seja a tradição alimentar desse povo.
Falando mais especificamente sobre a cidade de Ubatuba, antes de um período de maior isolamento (entre 1880 e 1960), há pouquíssimos estudos sobre a vida cotidiana da cidade.
Um importante texto a respeito de nossa economia, entre fins do século XVIII e início do século XIX, é a tese de doutorado de Oscar Holme, intitulada “Ubatuba – de uma agricultura de subsistência para uma agricultura comercial”, através da qual podemos ter conclusões sobre o que se comia por aqui, no período.
Seguindo o fluxo de modelo de economia agrária do país, à época, o universo caiçara era povoado por famílias que mantinham pequenas propriedades nas quais plantavam feijão (preto ou de corda), arroz vermelho, mandioca, milho, café e cana de açúcar. Todos estes itens, somados às carnes de caça e peixes, às frutas nativas, tais como pitanga, jabuticaba, cajú e goiaba, ou exóticas, como banana e jaca, que eram consumidas ao longo dos caminhos entre a roça e a casa, compunham a alimentação caiçara do período.
Portanto, a chamada tradição alimentar caiçara varia de acordo com o espaço e o período histórico. Por mais estranho que hoje possa parecer, tanto quanto o famoso prato “Azul Marinho”, o feijão cozido com carne de paca ou de tatu, o café adoçado com garapa, a cachaça, o pato ensopado – comido com arroz vermelho –, o omelete de siri, o pixé, o raluá, o licor de pitanga, o suco de cambuci, o doce de mamão verde, as ovas fritas de tainha, o virado de feijão guandu, o viradinho doce de banana, a sopa d´água com sapreso, a sardinha preparada na chapa do fogão a lenha, o nhoque de mandioca e tantas outras iguarias também são importantes criações da culinária caiçara.
Mais ainda: não podemos nos limitar ao passado e, observando o presente, constatamos que, partindo dos tempos dos Tupinambá, passando por todas as gerações caiçaras que se formaram, até chegarmos aos dias atuais, nativos ou migrantes locais consumiram desde a milenar farinha de mandioca, a proteína animal proveniente da pesca e da caça (e aqui incluímos a carne humana), passando por uma enorme diversidade de frutas, tubérculos, grãos, cereais, caldo de cana, cachaça, melado, carne bovina seca, farinha de milho, café, enfim… até chegarmos ao atual modelo econômico de vida, em que não mais produzimos o que comemos mas compramos os mais diversos tipos de produtos do que chamamos de alimentação moderna, recheada de gordura saturada e derivados de farinha de trigo, milho e soja, transgênicos.
E é este conjunto contemporâneo de ingredientes que fará, daqui a algumas décadas, os estudiosos do tema entenderem que no menu de hoje, também, está a “tal tradição”.
A terra é mesmo redonda e ela não para de girar!
* Heyttor Barsalini é diretor teatral e pesquisador da história da alimentação brasileira, desde 2013 ministra cursos, palestras, oficinas gastronômicas nos estados de SP, RJ e MG. Realizou ampla pesquisa sobre a tradição alimentar caiçara de Ubatuba e, sobre o tema, publicou o livro “A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NAS TERRAS DE YPEROIG” (Ed. Chiado). Seus trabalhos podem ser acompanhados pelas redes sociais (Facebook, Instagram e Youtube), pelo nome de Receitas Históricas Brasileiras, núcleo de pesquisa que mantém em parceria com a pedagoga Isamara Gouvêa.
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