Por Lalá Ruiz*
Na última semana, a indústria do vinho nacional foi surpreendida com a notícia do resgate de 208 pessoas em situação análoga à escravidão na colheita da uva no Rio Grande do Sul. Contratados pela empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, com sede em Bento Gonçalves, esses trabalhadores atuavam na colheita, carga e descarga de uvas para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton. As três empresas, que estão entre as mais tradicionais do Brasil, afirmaram desconhecer o fato (leia abaixo as notas oficiais divulgadas pelas vinícolas).
Realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT) e polícias Federal e Rodoviária Federal, a operação que culminou no resgate teve início no dia 22 de fevereiro, e foi deflagrada após denúncia feita à PRF por um grupo de trabalhadores que fugiu do alojamento.
Segundo informações do MTE publicadas no portal Gov.br, o grupo de fiscalização da cidade de Caxias do Sul (RS) foi ao local indicado pelos trabalhadores e encontrou mais de 200 pessoas apinhadas num alojamento, sem segurança, higiene e sofrendo ameaças dos empregadores, inclusive agressões com uso de choques elétricos e spray de pimenta. Ainda segundo o MTE, eles também estavam com os salários atrasados e com dívidas permanentes.
“Como foram recrutados na Bahia, já vieram na viagem para o local de trabalho com dívidas de alimentação e transporte. Fora isso, todo o consumo deles no alojamento era anotado num caderno do mercado local, que vendia os produtos a preços extorsivos. Além disso, eles relataram que iniciavam o trabalho as quatro da manhã e iam até as oito ou nove horas da noite, numa jornada extremamente exaustiva”, disse o auditor fiscal do Trabalho Vanius João de Araújo Corte.
Em sua coluna no Portal UOL, o jornalista Leonardo Sakamoto relata que os trabalhadores eram mantidos no alojamento sob vigilância armada. Ainda de acordo com Sakamoto, 194 trabalhadores já voltaram para a Bahia em ônibus fretados, quatro ficaram na cidade de Bento Gonçalves e nove foram para outras cidades da região.
O MPT prometeu analisar cada caso individualmente para calcular a compensação, mas todos os trabalhadores resgatados receberão três parcelas do seguro-desemprego a serem pagas pelo governo federal.
De acordo com informações da Agência Brasil, o ministro da Igualdade Racial, Silvio de Almeida, solicitou a convocação de uma reunião extraordinária da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
“O caso dos trabalhadores resgatados em situação semelhante à de escravo em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, mostra a necessidade de uma Política Nacional de Direitos Humanos”, disse o ministro. Almeida garantiu apoio aos trabalhadores resgatados e informou que um procedimento administrativo será instaurado.
Por meio de seus advogados, a empresa Fênix declarou que os devidos esclarecimentos serão prestados no decorrer do processo judicial e que “não compactua com desrespeito aos trabalhadores”. Vale ressaltar, também, que as vinícolas que contrataram o serviço poderão ser responsabilizadas. Confira o que dizem as vinícolas envolvidas no caso:
Vinícola Aurora
“A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos.”
Cooperativa Vinícola Garibaldi
“Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada. Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos.”
Família Salton
“A Família Salton repudia veementemente e não compactua com nenhum tipo de trabalho sob condições precárias, análogas à escravidão. A empresa e todos os seus representantes estão solidários a todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados de forma desumana e cruel por um prestador de serviço contratado.
Reforçamos que todas as informações foram verificadas antes da contratação do fornecedor. Entretanto, trata-se de incidente isolado e a Família Salton já está tomando medidas cabíveis frente ao tema, além de ser colocar à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo.
A empresa salienta que já está trabalhando para intensificar os controles de contratação, prevendo medidas mais austeras em todo e qualquer contrato de serviços terceirizados. Prevê ainda a associação e parcerias com órgãos e entidades do setor para melhorar a fiscalização de práticas trabalhistas.
Com um legado de 112 anos, a Família Salton é referência em sustentabilidade e signatária do Pacto Global da ONU e realiza projetos que refletem diretamente a responsabilidade social da empresa e seu compromisso como empresa cidadã.”
Uma breve reflexão
É inaceitável que, em pleno 2023, ainda sejamos “brindados” com esse tipo de notícia. E mais triste ainda é que as recentes denúncias de trabalho análogo ao escravo tenham origem numa atividade que nasceu do sonho de famílias que vieram ao Brasil fugindo da fome e em busca de mais oportunidades e de um mundo mais justo.
É importante lembrar que a escravidão foi oficialmente abolida no Brasil em 1888. E que, infelizmente, a exploração de mão de obra é um câncer na sociedade brasileira, que ainda está longe de ser justa, humana e igualitária.
Que os fatos sejam devidamente apurados e os responsáveis devidamente punidos no rigor da lei.
Episódios como esse mancham a trajetória do vinho brasileiro.
FONTES:
Crédito da foto que ilustra a coluna: Carlotta Silvestrini por Pixabay
*Lalá Ruiz é jornalista formada pela PUC-Campinas. Trabalhou no extinto jornal Diário do Povo e no Correio Popular, ambos de Campinas (SP). Gosta de rock, blues, jazz, Clube da Esquina, pop latino, flamenco, literatura, televisão e cinema. É torcedora do Santos F.C. e criadora do IG @oassuntoevinho.
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