Só mesmo o amor para eternizar um estilo de cerveja tão antigo que remonta ao século 13. Repleta de lendas, anedotas e presente em produções literárias ao longo do tempo, a cerveja Lambic é resultado das experiências de feitura da bebida quando havia tão pouco conhecimento e recursos para a produção na Idade Média. À epoca, não havia fermentação controlada – ou seja, a fermentação era feita com leveduras selvagens. A cerveja era fermentada com as bactérias e leveduras presentes no ambiente, sem nenhum controle e, para isso, os barris precisavam estar abertos. E para serem autênticas, ainda precisam seguir esse manual.
Podemos dizer que há três grandes famílias no mundo da cerveja: as Ales (cervejas de alta fermentação), as Lagers (baixa fermentação) e as Lambics – tendo sido a última um laboratório para o que viriam a ser as outras, quase como uma “mãe”. Com o passar do tempo e o maior domínio das técnicas de produção, tanto as Ales como as Lagers ganharam mais espaço por apresentarem maior controle no processo de fermentação, e as Lambics ficaram atreladas à escola belga. Até hoje a Lambic é o forte da região de Pajottenland.
Inegavelmente um dos povos que mais contribuíram para o conhecimento cervejeiro no mundo, os belgas também são os responsáveis pela popularidade da família Lambic. Em neerlandês, “lambiek” (alambique, em português) vem do árabe “al ambic”, e ilustra como a cerveja era armazenada para sua fervura e fermentação. Trigo não maltado e cevada eram moídos, misturados em água e, tendo o mosto filtrado, descansava para receber as leveduras do ambiente. Por isso, não era incomum que teias de aranha cobrissem os tonéis abertos.
A região do Vale do Rio Senne, em Bruxelas, é considerada a ideal para a fabricação de uma autêntica Lambic por conta da presença de dois microorganismos no ar (Brettanomyces Bruxellensis e o Brettanomyces Lambicus). Experimentos como a adição da espuma de outras cervejas no mosto para auxiliar a fermentação se mostraram eficazes e, hoje sabemos, que se deve pela presença de leveduras.
A Cervejaria Timmermans, que produz lambics há mais de trezentos anos, opta por descansar o mosto em placa de cobre expondo o líquido em temperatura ambiente de outubro a abril, meses mais amenos no hemisfério norte. Na última etapa a bebida é armazenada em barris de carvalho, onde maturam de seis meses a dois anos. Hoje, com máquinas e conhecimento de técnicas específicas para a fermentação, a fabricação segue um “descontrole controlado”, por assim dizer, pois a fermentação do líquido segue vindo do ambiente, produzindo aromas inusitados aliados à acidez da cerveja de trigo.
Arrisco dizer que chega ao olfato certo aroma animal, de feno, com final seco e muita acidez, remetendo à sidra. Os cervejeiros modernos usam também lúpulo envelhecido (ao menos três anos) em suas receitas para desprezar o amargor, uma vez que lúpulos com muito tempo de colhidos perdem a característica.
Da pureza às Fruit Lambic
Era de se esperar que novas variações da receita das Lambic surgissem com o tempo. Além das chamadas “Straight Lambics”, as originais sem adjuntos, surgiram blends – mistura de cervejas Lambic com maturação diferentes criando uma nova fermentação dentro da garrafa, as “Gueuze”, também conhecida como champagne da Bélgica – as “Faro” (Lambic com adição de açúcar) e as “Fruit Lambic”, com uso de frutas como pêssego, cerejas ou framboesas.
O exemplar mais clássico das Fruit Lambic é a Kriek Boon, hit das degustações entre os amantes de cervejas. Com fermentação espontânea e maturada em barril de carvalho, a cervejaria belga Boon adiciona cerejas maceradas – conferindo o doce e o ácido ao mesmo tempo. Um dos toques finais, como a maioria das Lambic, é que suas garrafas são fechadas com rolhas de champagne. Outros rótulos famosos entre as frutadas são a Lindermans e Mort Subite.
A Boon também fabrica uma das Gueuze mais famosas, a “Oude Geuze Boon”, mistura entre distintas Lambics. A histórica Brasserie-Brouwerij Cantillon também faz parte do enredo do estilo, pois, além de fabricar Gueuzes desde 1900 fazendo blends, hoje é responsável por manter a memória dessas produções vivas com um museu especializado. O museu, que fica em Bruxelas, é uma viagem no tempo e aos antigos barris e maquinários rústicos. Está na minha lista de visitas pós-pandemia!
Nota de rodapé: Ambas as históricas cervejarias Boon e Cantillon são da cidade Lembeek, também citadas como origem do nome do estilo.
E as Lambic brasileiras?
Por conta do fator geográfico, encontrar uma Lambic autêntica no Brasil é quase impossível. Não há atmosfera propícia como na região do Senne, e a produção precisa ser feita em dias frios (temperatura até 8°C). Mas existem alguns bons exemplares que seguem o guia belga de produção, porém com a fabricação mais controlada. A sugestão nacional que trago para a coluna é a “Belgian Lambic”, da Cervejaria 1824 Imigração (RS). Este rótulo replica a microbiota belga e é maturada por um ano, com blend de madeiras brasileiras.
Outra Lambic da 1824 é a Sour Hibiscus Lambic, uma cerveja ácida com aromas rústicos do estilo Lambic, com a adição de flor de hibisco. Confira a degustação desse rótulo no meu instagram (@cervejopedia)!
A minha dica é se jogar no estilo de coração aberto e, por que não, arriscar um jantar harmonizado de Dia dos Namorados também. Pra fechar: Lambics vão super bem com peixes mais gordurosos, como o salmão e o arenque, e frutos do mar como mexilhões.
Capricha, e saúde!
* Letícia Cruz Uma jornalista curiosa pelo mundo das cervejas compartilhando suas descobertas. Entusiasta da cerveja viva e local. Apaixonada pelos lúpulos! Criadora do @cervejopedia no Instagram e da loja @cervejopedia.beershop, que fica em Santana, capital paulista.
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