Se cerveja é sua praia, com certeza já ouviu falar no termo “trapista”, e também não é difícil que já tenha esbarrado com algum exemplar por aí. Não por acaso algumas dessas cervejas possuem alusões religiosas em seus rótulos, o que é mistério para muita gente. As trapistas são sinônimo de qualidade, e todo o reconhecimento é resultado de um longevo histórico de dedicação, cuidado e técnica na produção que, sim, são feitas em mosteiros. Acima de tudo, é preciso saber que “trapista” não é um estilo único de cerveja e, sim, um modo de produzir e seu conjunto de ritos. Mas será que todas as cervejas feitas por religiosos são trapistas? A produção conseguiu resistir à modernidade e seguir artesanal como feita há anos?
Começando pelo princípio, o nome “trapista” surgiu por conta do mosteiro de Notre-Dame de La Trappe, na Normandia, por volta do século 19. As cervejas que levam o selo de trapistas originais são produzidas por monges em mosteiros da Ordem Trapista (ou Ordem Cistercienses reformados de Estrita Observância, uma congregação que deriva da Ordem de Císter (ordem religiosa monástica católica beneditina reformada). Eles seguem a regra de São Bento, de orar e trabalhar (“ora et labora”), e acreditam que precisam ser autossuficientes, produzindo os alimentos para sua subsistência.
Atualmente, existem pouco mais de 170 mosteiros trapistas no planeta, mas apenas 14 deles têm produção ativa de cerveja. Treze deles estão na Europa (seis na Bélgica, um na França, um na Espanha, dois na Holanda, um na Inglaterra, um na Áustria e um na Itália), e um nos Estados Unidos. Destes, apenas onze monastérios recebem o selo de cervejas trapistas, a Authentic Trappist Product (ATP) instituido em 1962, sendo que os principais estão na Bélgica, responsáveis pelos famosos rótulos Rochefort, Achel, Orval, Westmalle, Westvleteren e Chimay, que produzem as cervejas Dubbel, Tripel, Quadrupel, Belgian Ale que tanto amamos.
Fica registrado aqui o meu compromisso em abordar estes estilos em detalhe em outra oportunidade!
As cervejas reconhecidamente trapistas na Holanda são a La Trappe e Zundert, a Gregorius na Áustria, Tre Fontane na Itália e a Spencer nos EUA. Uma curiosidade é que os mosteiros que não produzem cerveja, fazem algum algum outro tipo de alimento como queijos, pães e biscoitos – que também podem receber o selo ATP.
Para receber o selo trapista, a produção deve seguir um conjunto de regras muito específicas: em primeiro lugar, a cerveja precisa ser produzida em todas as etapas dentro dos muros do mosteiros. Precisam ser fabricadas pelas mãos dos próprios monges, seguir modelos de negócios consistentes com o modo de vida monástico e, não menos importante, precisa se destinar a cobrir o custo de vida dos monges. O que sobra dos lucros deve ser revertido para instituições que auxiliam as pessoas mais necessitadas. Se você queria um motivo para experimentar uma trapista, já tem aos montes!
E caso tenha ficado com vontade de conhecer essas cervejas diretamente da fonte, pode organizar uma viagem com roteiro cervejeiro quando a pandemia permitir. Algumas abadias têm estruturas pensadas para o turismo, com salas de degustação e lojas de souvenir.
Cerveja trapista x cerveja de abadia
Agora que sabemos que para ser considerada como trapista a cerveja precisa cumprir uma série de condições, podemos afirmar: não há cerveja trapista no sentido literal da palavra no Brasil, ainda que existam mosteiros trapistas por aqui (e monges cervejeiros aos montes). Mas o que são, então, as cervejas de abadia que tanto falamos, como a Dubbel, Tripel, Quadrupel e afins?
Para responder essa dúvida, temos de voltar muito no tempo – mais especificamente ao século 9. Foi nesta época que os monges dos mosteiros em geral começaram a fabricar cerveja como maneira de alimentação durante os longos períodos de jejum. A cerveja era um dos poucos alimentos que podiam ser consumidos. Além disso, pelegrinos que estivessem de passagem eram ofertados com esse líquido sagrado – que ficaria conhecido como o pão líquido dos fiéis, pois servia de fonte nutricional.
Mas engana-se quem pensa que somente os mosteiros trapistas fabricam as cervejas. As ditas cervejas de abadia são aquelas produzidas por monges cervejeiros de monastérios católicos que não pertencem à Ordem trapista. Os estilos Strong Golden Ale, Blonde, Dark Strong Ale, e também Tripel e Dubbel, são consideradas como cervejas de abadia, uma categoria mais abrangente.
Então, como via de regra, as cervejas trapistas também podem ser consideradas cervejas de abadia. Porém, cervejas fabricadas fora deste cenário de exigências e sem seguir a ordem trapista, são consideradas de abadia.
Cervejas trapistas na modernidade
O primeiro mosteiro fora da Europa a conseguir o selo de cerveja trapista foi a Spencer, em Massachusets, nos Estados Unidos, fundada nos idos de 1950. O “boost” inicial para investir na produção cervejeira foi a baixa na saída de outros produtos antes produzidos por lá, além de perceberem que a cidade necessitava de incentivos. Para isso, um dos monges daquela ordem (o monge Isaac, ilustrado aqui na coluna na imagem de destaque) foi até a Bélgica adquirir os conhecimentos cervejeiros necessários para, enfim, implementar em sua abadia as técnicas necessárias para a produção.
Hoje a Spencer produz mais de 4 mil garrafas por semana, seguindo todas regras definidas pela ATP. A Spencer Trappist Ale, carro-chefe da abadia, leva 37 dias para ser produzida e tem 6,5% de teor alcoólico. Porém, os monges apostaram tão alto na produção de cerveja que contam com mais de onze rótulos em seu portfólio, graças a um empréstimo para melhoria do maquinário. Lançaram, inclusive, a primeira Stout trapista já documentada pela Beer Judge Certification Program (BJCP), além de lançar IPAs bem aceitas entre os estadunidenses.
Saúde!
* Letícia Cruz Uma jornalista curiosa pelo mundo das cervejas compartilhando suas descobertas. Entusiasta da cerveja viva e local. Apaixonada pelos lúpulos! Criadora do @cervejopedia no Instagram e da loja @cervejopedia.beershop, que fica em Santana, capital paulista.
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