Uma receita milenar, o Migliaccio é um bolo-pudim muito comum de ser apreciado na Terça-Feira Gorda de Carnaval na Itália. Conheça mais da história dessa iguaria nas palavras da engenheira de alimentos e estudiosa da história da alimentação, Sandra Mian.
* Por Sandra Mian
Na Itália, a farinha usada era principalmente a farinha de trigo ou a “flor do trigo”, a semolina, que é mais grossinha que a farinha comum que a gente usa para bolos. A semolina não reage da mesma forma que a farinha de trigo comum durante a feitura de um bolo: ela é mais difícil de se reidratar e com isso a massa pode ficar com gosto de massa crua. Por isso muitas receitas usando semolina pedem que a semolina seja cozida primeiro para ser reidratada e gelatinizada e só então os demais ingredientes sejam acrescentados.
Só que os pobres nem sempre tinham farinha de trigo e ainda menos ‘flor de farinha de trigo’. Um dos cereais usados no sul da Itália era o ‘miglio”, o nosso conhecido PAINÇO. E daí provavelmente esse tipo de doce para ocasiões especiais era feito com a farinha que eles tinham, ou seja, a farinha de MIGLIO.
Ora, eis que num belo momento chega o MILHO na Itália! Só que agora o milho de verdade, o nosso, ZEA MAIZ. O milho é original das Américas, mais especificamente do México e mais especificamente ainda, no estado de Puebla.
Foi nessa região do centro do México que o tataratataratatara-avô do milho atual, o THEOCINTE, foi domesticado. Quando os espanhóis chegaram ao México conheceram essa maravilha que é o milho e o levaram para a Europa. Naquela época – final do século 15 e século 16 – o sul da Itália estava governado por espanhóis. E foram eles que introduziram, via o Sul, coisas vindas das Américas como as abóboras, a pimenta picante, o feijão e o MILHO, que no começo era visto como comida para animais. Mas no Sul da Itália tinha muitos camponeses pobres. Exatamente como os camponeses pobres de Portugal, da Espanha, da Romênia e da França, os camponeses da Itália acabaram usando o milho como alimento para si mesmos, além de alimento para seus animais. A farinha de trigo era bem mais cara que a farinha de milho.
O MIGLIACCIO já nos dá uma indicação no próprio nome que ele acabou sendo feito com farinha de milho. Aliás, há um bolo-pudim quase idêntico na França e que se chama MILLAS CHARENTAIS.
Nos Estados Unidos, há também uma versão muito semelhante chamada INDIAN PUDDING. Mas o mais legal é que o nosso famoso BOLO DE FUBÁ DE MASSA COZIDA, muito provavelmente tem sua origem no migliaccio italiano! O fubá é cozido antes do demais ingredientes serem acrescentados e leva queijo também!
Vamos à receita do MIGLIACCIO: 2,200 anos e sempre gostoso!
INGREDIENTES
500 g de leite integral (500 ml)
400 g de água (400 ml)
180 g de semolina
250 g de açúcar
250 de ricota
4 ovos
50 g manteiga
Casca de 2 laranjas
Casca de 2 limões sicilianos
1 fava de baunilha (ou extrato de baunilha)
1 pitada de sal
Opcional: 1 colher (sopa) de água de flor de laranjeira, uvas-passas, pedacinhos de casca de laranja ou cidra cristalizada. Eu usei tudo o que tinha direito! O melhor de tudo é a água de flor de laranjeira … Oh meu pai! O perfume que dá! Podendo, usem! Um vidrinho de água de flor de laranjeira – comprado em lojas de alimentos árabes ou do Oriente Médio – dura uma eternidade se guardada na geladeira. E dá um toque ultra especial até para uma simples salada “de frutas” só de fatias de laranjas ou no manjar branco purinho, sem coco. Eu uso num monte de coisas.
- Primeiro coloque a semolina em uma panela de fundo grosso e junte a água, mexendo bem até a semolina ficar bem misturada e sem grumos. Agora junte o leite, a manteiga, a pitada de sal e 50 g de açúcar (retirado do total de 250g). Junte a casca inteira de 1 laranja e de 1 limão, MAS SÓ A PARTE AMARELINHA. A parte branca é amarga! Acrescente também a fava de baunilha, se estiver usando: corte-a ao meio, raspe bem as sementinhas para que caiam na mistura e jogue dentro também a fava.
- Leve ao fogo baixo e mexa até ferver e cozinhar bem. Vai ficar uma mistura grossa.
- Deixe esfriar um pouco e retire as cascas, raspando bem com uma faquinha para retira toda a mistura que aderiu à casca e jogue as cascas fora. Retire a fava de baunilha, enxágue rapidamente e guarde para por no açúcar: é assim que eu faço meu açúcar baunilhado, usando a fava que já usei em outra receita! Aqui nada se perde, ainda mais fava de baunilha que custa uma fortuna! O objetivo dessa etapa é que a mistura fique muito perfumada!
- Enquanto a massa de semolina esfria prepare as frutas (se for usar). Se as passas estiverem muito secas e duras, deixe um pouquinho de molho em água morna. Corte a cidra ou casca de laranja cristalizada em cubinhos.
- Agora bata muito bem a ricota (se precisar, passe por peneira) com umas 2 colheres do açúcar que sobrou. Se você vai usar a água de flor de laranjeira e o extrato de baunilha, misture-os aqui com a ricota e bata muito bem. Acrescente também a casca raspada do outro limão e da outra laranja.
- Faça o mesmo com os ovos: bata os ovos inteiros com o açúcar restante até formar uma mistura grossa e clara.
- Prepare uma forma de 20 a 25 cm de diâmetro, forrando com papel para forno. O ideal é uma forma com fundo removível e meio alta.
- Pré-aqueça o forno a 180ºC. Não use forno muito quente!
- Agora misture a ricota com a semolina cozida, muito bem. Depois junte os ovos com cuidado para não perder muito o volume.
- Coloque a massa na forma preparada e leve a assar no forno moderado. Pode levar no mínimo 40 minutos, dependendo do tamanho da forma. Numa forma maior será no mínimo 40 minutos porque a massa fica mais baixinha. Numa forma de menor diâmetro o migliaccio vai ficar mais alto e vai demorar mais para assar, até 1 hora ou mais. O importante é não usar forno forte.
- O resultado correto é quando a superfície fica toda rachada! Isso mesmo! É assim o jeito certinho!
- Sirva morno ou em temperatura ambiente, polvilhado com bastante açúcar impalpável (de confeiteiro) e OBVIAMENTE com confeitos coloridos e prateados. Sem os confeitos nunca será um verdadeiro migliaccio napolitano!
* Sandra Mian é criadora do Grupo Comida pra Estar de Bem com a vida no Facebook, espaço onde fala de técnicas, receitas e curiosidades do universo gastronômico. O grupo é aberto! Participe!
https://www.facebook.com/groups/240127929523952/
Quer saber mais sobre as origens do carnaval, assista ao webinário da Sandra para Planta.VC
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