Piri-Piri: o molho africano que vai no frango português

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Por Sandra Mian*

É difícil imaginar que um molho ultra picante, notoriamente africano, virou o símbolo do “FRANGO GRELHADO PORTUGUÊS”. Mas assim é. Quando mundo afora – menos no Brasil que não tenho visto – a gente vê no cardápio um frango grelhado à portuguesa ou frango piri-piri, pode ter certeza que é picante como qualquer bom molho bem baiano. Ou africano. Que no fundo a origem dos dois é a mesma.

Então vamos entender um pouquinho dessa história e de como a cozinha portuguesa, que não é conhecida pela comida picante, acabou carregando a fama de um molho criado na África. De novo! Esse negócio de apropriação cultural é, na verdade, um roubo mesmo. Mas como foi que os portugueses acabaram levando a fama de terem criado um dos melhores molhos de pimenta do mundo?

TODAS as pimentas picantes – os “chiles” como dizemos em espanhol do México ou “ajís” na Colômbia e Bolívia ou “chilies” em inglês ou “pepperoncini” em italiano ou “pimenta” em português, são nativos das AMÉRICAS. Não se sabe ao certo o lugar exato, se foi no México mesmo e espalhou para o resto das Américas ou na Floresta Amazônica e de lá para o México. Uma coisa é certa: nasceu aqui, desse lado do mundo.

Quando Colombo chegou em Hispaniola, hoje Haiti, em 1492, já encontrou os caraíbas (foi daí que nasceu o nome Caribe, dos povos que viviam naquela região) comendo pimenta. Idem Cortéz quando chegou ao México. E idem Cabral quando chegou ao Brasil.

Os Mayas e Aztecas, no atual México, Belize e Guatemala, tinham uma cultura extremamente refinada e a gastronomia deles não ficava nada atrás da Europeia. Em alguns casos eu diria que até mais refinada… E esses povos faziam com os chiles misturas incríveis, molhos frescos – as SALSAS – que davam muito sabor aos alimentos. Usavam também inúmeras variedades de chiles secos, alguns só secos, outros secos e defumados. Cada um com um sabor, cor e força diferente.

Por isso, até hoje, os molhos mexicanos têm tantas nuances diferentes. Quem acha que é tudo só picante de queimar está muito enganado! Cada molho tem seu sabor único e alguns são até bem suaves. Bem … suave pra mexicano, é claro! Além do sabor os chiles agregam muitos nutrientes, principalmente vitaminas A e C. São riquíssimos em vitaminas e no México o chile não é só um tempero a mais, uma especiaria, mas um verdadeiro ingrediente dos pratos tanta é quantia que usam.

O mesmo ocorria no Brasil antes dos portugueses. Só que no Brasil nossos nativos estavam num patamar cultural mais baixo que os mexicas ou mayas. E também não havia classes sociais nem hierarquia entre nossos nativos: era todo mundo igual, todo mundo comia a mesma coisa. E em culturas super igualitárias em geral não se forma gastronomia refinada. Gastronomia refinada tem muito a ver com classes sociais demarcadas.

Aqui os povos nativos em geral comiam as carnes cozidas ou grelhadas, sem tempero junto. Ele era à parte: uma mistura de sal e pimenta. Botavam um pouco da comida (carne, beiju, farinha de mandioca, etc) na boca e por cima, já na boca, jogavam uma pitada da INQUITAIA, a mistura de sal e pimenta. Ou seja, a comida era temperada na boca, ao gosto de cada um.

Antes mesmo de virem ao Brasil, os portugueses já estavam rodeando a costa da África: foram os primeiros navegadores a ultrapassar o Cabo das Tormentas, que por isso passou a se chamar Cabo da Boa Esperança. Os portugueses estavam correndo atrás de ESPECIARIAS e sabiam que elas vinham do Oriente. Só que o caminho mais curto era controlado pelos árabes muçulmanos que já faziam comércio com os genoveses e venezianos.

Portugal queria encontrar uma rota alternativa e conseguiu. Só que evidentemente os portugueses foram parando pela costa da África e, evidentemente, causando estragos imensos. Chegavam, se achando os reis da cocada preta e pronto! Mais um povo africano ou asiático caía nas garras portuguesas.

Se vocês acham que os portugueses eram bonzinhos e só queriam fazer comércio com a África e a Asia, por favor voltem a estudar história. Aquilo que contaram pra gente nos anos 70 e 80 era mentira. A verdade é muito mais complexa, feia e vergonhosa.

Mas voltando ao piri-piri. Logo em seguida ao descobrimento do Brasil, Portugal viu que aqui dava pra plantar açúcar. Eles já cultivavam na Ilha da Madeira e se vocês acham que os portugueses, trabalhadores e tão católicos, que trabalhavam nas plantações de cana, esqueçam: eram escravos africanos.

Lisboa no final do século 15 e começo do século 16 já era considerada a capital “negra” da Europa porque o número de escravos em Lisboa era enorme. E, claro, nas Ilhas também, no trabalho duro. Logo começa o tráfico muito mais intenso, agora trazendo africanos forçados ao Brasil.

Nesse “comércio” muita coisa de comer foi e veio também. Os espanhóis levaram a pimenta e outros produtos para a Ásia, com a Nau da China. Por isso, a gastronomia de um país como as Filipinas hoje é tão parecida com a espanhola. E Portugal levou muita coisa do Brasil para África e vice-versa.

Os navios negreiros foram um dos mecanismos de globalização alimentar. E de muita dor, lágrimas, sofrimento e eterna vergonha e dívida com o continente africano.

Portugal tinha colônias na Costa Oeste e na Costa Lesta da África e os escravos que vieram de cada uma dessas regiões, quando puderam ter acesso às cozinhas – poucos, muito poucos, e sempre trabalhando nelas como escravos – começaram a misturar técnicas e ingredientes da sua terra natal.

Esqueçam a tal bobagem que “feijoada nasceu nas senzalas porque os escravos usavam os pedaços do porco que os senhores não comiam”. Balela, lenda urbana e que até historiador famoso repete. Escravos no Brasil comiam o que o senhor dava: angu, farinha de mandioca, feijão cozido com um pedaço de toicinho ou bacalhau em dia de “comer magro”.
Comiam mal, muitos comiam em cochos, como os animais. E pode parecer estranho comer bacalhau, que hoje é caro. Naquela época era baratíssimo e os “piedosos e muito católicos” senhores de escravos faziam questão do jejum, de não comer carne, nos dias “santos”.

Para a África foram do Brasil as pimentas, a mandioca, o amendoim. Da África para o Brasil vieram o quiabo, o gosto pela taioba, cará e outras raízes (já tínhamos no Brasil mas os africanos adoravam as de lá também e continuaram o consumo no Brasil), o gergelim, o dendê.
Manga, jaca e tamarindo são da Índia mas já estavam mais que adaptados na Costa Oeste da África, na região onde hoje é Angola, por exemplo. Idem o coco, temperos como gengibre e outras especiarias da Índia e das Molucas, que eram os locais de onde vinham a pimenta, cravo, canela, gengibre, noz-moscada.

Já dá pra ver que um prato baiano que leva leite de coco, pimenta, gengibre … tem um pé na África … que tem um pé na Índia! Um curry de Goa, região que foi colonizada por portugueses, se parece muito com os cozidos baianos. Muito mesmo.

E foi muito provavelmente em Angola que as cozinheiras africanas criaram essa maravilha que é o PIRI-PIRI. Com o tempo esse molho se espalhou por todas as colônias africanas de Portugal e os africanos em Portugal, descendentes dos antigos ou novos imigrantes, acabaram levando com eles a receita. O molho passou inclusive a ser industrializado, vendido em vidrinhos como os nossos molhos de pimenta.

Com o passar do tempo os portugueses, os brancos mesmo, passaram a usar também esse molho como marinada para carnes, principalmente para frango grelhado. Ele é aberto em “crapaudine”, vulgo frango atropelado, aberto pelas costas para cozinhar mais rápido, é besuntado com o molho, marinado por várias horas ou desde o dia anterior, e depois grelhado sobre brasas. É a melhor coisa do mundo pra fazer numa churrasqueira! E dai o “frango português” ou “piri-piri” acabou ficando super famoso na Inglaterra. Opa! Vocês devem estar se perguntando: “mas na Inglaterra ???” Sim! E isso tem a ver com imigração … de novo!

Portugal é um dos países mais pobres da Europa e havia e ainda há uma grande onda de imigração de trabalhadores manuais de Portugal para países mais ricos, como Inglaterra e França, por exemplo.

Quando a gente conversa nos hotéis ingleses ou franceses com as “femmes de chambre”, as arrumadeiras, vai ver que uma grande maioria são portuguesas. Depois da queda do muro de Berlim mudou um pouco, passaram a vir trabalhadores do Leste Europeu. Mas, por muito tempo, os cozinheiros nos restaurantes ingleses e as camareiras dos hotéis eram portugueses.

Só que não foram os próprios portugueses a popularizar o frango piri-piri, mas uma rede de restaurantes SUL-AFRICANA, a Nando’s. Ela foi inaugurada em 1987 em Johannesburg, na África do Sul, e hoje conta com mais de 1.000 lojas em 25 países. Essa rede de restaurantes é especializada em comida AFRO-PORTUGUESA e um doS pratos mais vendidos é … o FRANGO PIRI-PIRI.

A Nando’s inclusive tem como símbolo o famoso galinho português, o GALO DE BARCELOS. Só que pra adaptar o frango ao paladar europeu, eles desceram um “pouquinho” (muito) o nível do picante do molho. Hoje tem muitos restaurantes “portugueses” no mundo todo que só vende esse frango grelhado. Ou porco grelhado com o mesmo molho. Em geral acabam fazendo um molho oleoso, basicamente óleo misturado com pimenta em pó e páprica.

Gostoso mesmo é o molho original que deixo uma versão aqui ao final. Eu digo “versão” porque há tantas receitas quantas mamas na África. Evidente. Só que lá o molho é pura pimenta e das mais fortes. Quem não quiser tão forte, faça como eu: use uma porção de pimenta vermelha e uma porção de pimentão vermelho. Fica delicioso também.

É divino com o frango, é claro, mas também com costelinha suína e com peixes. Deixo um pouco sem misturar com a carne para servir à parte.

* Sandra Mian é criadora do Grupo Comida pra Estar de Bem com a vida no Facebook, espaço onde fala de técnicas, receitas e curiosidades do universo gastronômico. O grupo é aberto! Participe!
https://www.facebook.com/groups/240127929523952/

MOLHO PIRI-PIRI da Sandra Mian

Ingredientes

  • 1 pimentão vermelho bem grande, sem sementes
  • Várias pimentas “bird’s eye chili”, aquelas pimentas vermelhas pequenas
  • 1 cebola roxa pequena
  • Vários dentes de alho
  • Coentro e salsinha a gosto (opcional)
  • 1 colherinha de sementes de cominho (toste a seco antes para ter mais sabor)
  • Cerca de meia xícara de óleo ou azeite
  • Cerca de ¼ xícara de suco de limão taiti ou vinagre
  • Sal a gosto
  • Pimenta do reino a gosto (pode ser inteira porque vai processar tudo)

Modo de Preparo

  1. Coloque todos os ingredientes no processador ou liquidificador e ligue o aparelho até tudo misturar bem. Não precisar virar papinha de bebê não. Se ficar com um pouco de textura, melhor ainda. Se estiver muito grosso junte mais azeite e suco de limão ou vinagre. Se estiver muito líquido, mais pimentão ou pimenta.

    Transfira para um pote de vidro, cubra a superfície com o fio de azeite (ajuda a preservar se formar mofo na superfície).

Informações adicionais

Em geral, o frango piri-piri é servido com salada de alface e batatas fritas.

3 Replies to "Piri-Piri: o molho africano que vai no frango português"

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    Christopher 18 de junho de 2022 (11:24)

    Em Portugal não é conhecido como frango português, apenas frango de churrasco. E nem considerado um prato tipicamente português, pelo menos comparado a outros pratos (como a bifana, a cataplana, açorda, todos os diferentes pratos de bacalhau, etc…). Daí estranharmos vê-lo ser vendido como prato português noutros países, nomeadamente o Reino Unido.

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    Joao Felizardo 7 de março de 2023 (07:52)

    Faço saber que a rede Nandos deriva de um Portugues com o mesmo nome, nascido em Barcelos Portugal, que forçadamente teve que deixar Mozambique, e estabilizou-se na Africa do sul.
    Aí o sucesso do Franco Nandos, que já era conhecida em Mozambique.

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    Nick 14 de agosto de 2023 (14:32)

    Em Moçambique come-se o mesmo tipo de frango que em Portugal, pelo menos em Maputo. Portugal é Moçambique estavam interligados. Mas os frangos do Nandos nada têm a ver com as das churrascaria portuguesas. Provei em Londres e notei a diferença no sabor.
    Quem quer saber sobre a cadeia Nandos

    https://www.contacto.lu/sociedade/o-emigrante-portugues-que-virou-milion-rio-a-virar-frangos/1346433.html

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